quinta-feira, 2 de julho de 2009

MONÓLOGO


Um homem entra, senta-se e começa a falar


A “Loucura da normalidade” foi uma frase que algures li ou alguém me disse…não sei…mas de facto faz todo o sentido, se pensarmos bem, nada disto faz sentido não acha? (sorriso triste) A insanidade crónica da normalidade (pausa) somos todos robots com botões para acender e apagar, somos o saldo da nossa conta bancária, somos aquilo que consumimos, que nos consome, não somos nada… (e virando-se para a interlocutora) já reparou que temos horas para tudo e para nada?! Horas para acordar, horas para dormir, horas para comer, para trabalhar, horas para foder e muitas, muitas horas para nos adiar…( mostrando-se algo agitado) às vezes apetecia-me arrumar estas horas todas que nos fazem tanto mal com um murro certeiro na barriga dos dias!...E no entanto no entretanto destas horas todas desperdiçadas algo fica por fazer (pausa) esse algo somos nós às avessas à procura de qualquer coisa que nos justifique as horas a mais e os passos a menos que demos ao encontro de nós mesmos (nova pausa) ou serei só eu a sentir-me assim...incompleto?...Não no fundo, acho que nem é bem isso, é mais…acho que o que toda a gente quer- e eu incluído- é ter alguém que nos passe a mão pela cabeça e nos diga “tem calma rapaz tá tudo bem” mas está?... Está mesmo tudo bem?...(dirigindo-se à interlocutora invisível) Se tu perguntares isso a alguém- posso tratá-la por tu não posso?- Obrigado…Se se perguntar isso a alguém, está-se só a ser educado ou quer-se de facto uma resposta sincera, do tipo “ não, não estou nada bem, aliás estou cada vez pior e mais confuso” hey who cares né? (pausa) na verdade ninguém gosta de ouvir os problemas dos outros, por isso é que se paga a psicólogos e psiquiatras para o fazerem, por isso aqui estou a gastar balúrdios consigo, oh desculpe, acaso estarei a ser desagradável …? sabe no fundo eu não preciso dum médico, eu não estou doente, eu preciso é dum amigo que me oiça, um que não me cobre mais por isso, mas suponho que isso já seria pedir demais não acha? Desconfio que amigos desses já não se fabricam, o stock acabou-se (riso forçado) E a relação psicólogo/ paciente é algo clínico, formal, não é uma relação de amizade, pois não doutora?.. não seria …ético... Como? Quer que eu lhe fale de quando era puto? Se tinha amigos? Sim até tinha bastantes amigos e partilhávamos as alegrias e tristezas próprias da idade, que também as temos quando somos crianças. Lembro-me perfeitamente de 2 deles, os meus melhores amigos na altura, enfim nunca mais soube nada deles, sabe como é cada um segue o seu caminho… éramos eu, o Nuno e o…Zé Gordo…Ah o Zé era tão gordo coitado (e sorri) e nós dizíamos coisas do género “ anda cá Zé Gordo, ai o raio do badochas, pote de banhas” quando estávamos mais chateados com ele ou mesmo quando não estávamos, era só para implicar, porque podíamos, porque queríamos, porque era giro irritá-lo…enfim… era quase o equivalente ao que hoje em dia se chama de “bullying”, só que nós não sabíamos nada disso, (e sorri novamente) deve ser porque na altura não falávamos lá muito bem inglês, mas repare que não lhe dávamos porrada nem nada disso, gozávamos só um bocadinho com ele e além disso não admitíamos que mais ninguém fora do nosso pequeno circulo de amizade o fizesse senão nós, aliás era pancada na certa se tratavam mal o nosso amigo, nem chamar pote de banhas podiam…enfim, suponho que não era por maldade que se diziam essas coisas, mas lá que custava ouvir isso custava…quer dizer devia custar ao Zé…(pausa suspirando) Ah mas quem é que eu quero enganar, doutora, crescer foi horrível! Foi não, ainda o é, porque nós nunca crescemos só envelhecemos… ser-se crescido é e sempre será aguentarmo-nos á bronca do dia a dia, sem fazer muitas perguntas e ir pagando as contas a tempo e horas, não é nada de muito mais profundo do que isso (risos) por isso é que a páginas tantas nós começamos a ceder sob pressão, deve ser porque ainda não somos suficientemente crescidos para aguentarmos tudo isto como uns homenzinhos…porque crescer é uma violência…somos logo catalogados em tudo o que dizemos, sentimos ou fazemos, na escola ainda é pior do que com os “amigos”, lá somos aquela frase, aquela alcunha, ou aquele excesso de peso que nos caracteriza ( e respirando profundamente) sim é verdade, já deve ter adivinhado, eu é que era o Zé Gordo, já começa a compreender melhor as coisas não?...Talvez?...Pois isto não explica tudo claro…mas quase tudo não? (risos)…E na adolescência então…ah Drªnão basta todas as sensações contraditórias, as hormonas a fazer das suas, a voz que muda ora estridente ora grave, os sonhos molhados e os embaraços das manchas nos lençóis e pijama, todas as crises existenciais que nos torturam, o mundo que conspira contra nós, não basta ter de lidar com tudo isso ainda temos de suportar essa despromoção em forma de rótulo que nos colam na testa…e de repente deixamos de ter uma identidade própria, que tão desesperadamente procuramos, e de a poder exprimir em paz, para sermos uma caricatura ambulante daquilo que os outros acham que nós somos…apenas um estúpido saco gordo, cheio de hormonas inquietas… e toda a nossa energia, toda a nossa maneira de ser é considerada coisa própria da idade, que passa com a idade..com a idade parece que tudo passa, passa o entusiasmo de viver, passam os sonhos, passa a intensidade com que se vive a vida quando não se é crescido, até a gordura passa (risos) sim há muito tempo que ninguém me chama de badochas ou pote de banhas…entretanto é claro que adquiri outras alcunhas, não ditas á minha frente, evidentemente! Quais? Isso agora vai ter de perguntar a quem as diz, mas desconfio que neurótico seja uma delas (pausa)…estou à espera que a doutora me confirme a veracidade desta (sorri)
Ah mas mesmo sem crescermos é uma questão de tempo até nos transformarmos em adultos, ate nos “cortarem as asitas”, não dum golpe só não, mas pouco a pouco, como um veneno que se vai entranhando e é administrado desde o início da escolaridade, porque é na escola que se aprende não a ler e a contar, porque isso podia-se fazer em casa e em menos de metade do tempo, mas a agir como um adulto, ou seja a obedecer, a aceitar ordens sem questionar a ordem inalienável das coisas, a aprender o nosso lugar na sociedade, a aprender a não sonhar em demasia, a não questionar, a aguentar o peso das regras do jogo que nos esmaga…(pausa) Na escola entra-se criança gorda em estado de liberdade pura e sai-se um adulto vitaminado, magro, formatado, normalizado e sem nada na cabeça…eles só descansam quando nos parecemos com eles. Eles controlam tudo, o amor, os filhos, as amizades, as viagens, tudo controlado em directo e ao vivo através das mensagens subliminares, na TV, no cinema, nos anúncios a detergentes, em todos os” mass media” há um estilo de vida a seguir, a copiar, uma ordem mundial a obedecer. Não podes pensar o porquê de uma vida inteira a crédito para consumires aquilo que te consome, não precisas de pensar nisso eles já o fizeram por ti…e ao fim do dia ninguém te livra do vazio que é não saberes afinal quem tu és…E quem são eles? Eles são os gajos que mandam, os que controlam as regras do jogo, os que estão no topo da pirâmide, eles não são como nós…no fundo inadaptados a esta realidade virtual, não somos como eles, ou pelo menos Eu Não Sou como eles “normal”, mas também não sou o que eles acham de mim do alto das suas certezas inabaláveis…nem tão-pouco sou o que penso de mim…Quem sou eu afinal Doutora?...Ah já sei o que sou: “Sou qualquer coisa de intermédio, pilar da ponte do tédio que vai de nada para coisa nenhuma”…Conhece Drª? Não?...é verdade receio que além de ser neurótico e ligeiramente psicótico eu goste de poesia…como sabe um mal nunca vem só (sorri) É do Mário de Sá Carneiro…não não é o político, o gajo que caiu do avião, este também caiu mais foi doutra maneira…(é interrompido e tem um ligeiro sobressalto) Mas já está na minha hora Dra.? Bem, já estava perdido nas minhas divagações que nem dei pelo tempo passar, obrigado na mesma por me ouvir e até para a próxima sessão, de hoje a 8 à mesma hora, certo?.. então adeus Drª.…

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