Não sabemos o que
falar, o que fazer e no entanto fazemos e dizemos. Dizemos mais do
que fazemos. Pouco importa o quê. O importante é dizer antes de
morrer. Ah as sensações meu caro sempre tão imprecisas. E como
exprimi-las? Elas atingem-nos agudas ou difusas. As portas abrem-se e
perplexoso entramos na vida. Não sabemos se isto é sonho ou um
pesadelo. Por isso dizemos. Porque enquanto dizemos não morremos.
Existimos no olhar dos outros ou no que julgamos ver no olhar dos
outros. Talvez sejamos apenas isso: impressões. Vagas. Tudo acontece
num dado momento, num dado lugar. Só o pensar acontece de subito sem
tempo ou lugar enquanto fazemos outra coisa qualquer. A vida passa.
Nada fica da vida que passa. só a memória do quer o olhar dos
outros nos fez sentir. Até não nos importarmos mais com ela porque
já não confiamos mais nela. e é aí que começamos a perder a
vontade de falar, de dizer. A memória é uma construção,
escolhemos aquela que nos fica melhor. Os outros só nos importam na
medida do olhar que nos reflectem e isso se nos interroga e nos
espanta é que nos faz andar para a frente. Sabemos ser sonho ou
ilusão ao olhar dos outros. Sabemos? E a musica pinta todos estes
meus estados de espírito doentios talvez. E o que é a saúde senão
um estado de contentamento consigo próprio? Haverá quem mais se
ache assim, como eu?
Observo aquela mulher
no café de gestos estudados e interessantíssimos de densidade zero
tão parecida com aquela mulher minha irmã que aparenta ser uma
artista na arte de nada fazer e tudo parecer. E que parece gozar
dentro de si a convicção de toda uma suposta genialidade. Será
isso a felicidade, essa convicção? Sinto sem querer essa ilusão. E
entendo-lhe o sabor. Encaro-a por compaixão. Com paixão? Não
consigo. E como queria. Isso enche-me de uma ternura abjecta. Sinto
isso tudo talvez porque ela é afinal minha irmã. Reconheço-lhe a
boca, os olhos o ouvido, o nariz. Criatura impossível, ridicula,
agressivamente ridicula mas que no entanto já foi tão bonita. A
mulher olha para mim e não me reconhece. Ponho os óculos e
reconheço que apesar de muito parecida NÃO é ela a minha irmã.
Mas é como se fosse. Há que amar e acima de tudo perdoar certas
mulheres. A mulher no café sacode os cabelos, retoca o baton e
esforça-se por parecer interessantíssima e por isso mesmo creio que
se torna interessantíssima. E dentro de mim sorrio. Com que vergonha
sorrio. Ontem, hoje amanhã sempre essa irmã, ou aquela mulher do
café tão parecida de gestos cuidadosamente estudados. Tão
cuidadosamente estudados que não tem sentido nenhum. É essa a sua
arte. Que vazia e no entanto que maravilhosa arte essa afinal. A arte
do (des)engano. E o que importa o que somos, senão o que pretendemos
parecer com toda a força do nosso ser? Somos apenas o que
parecemos? É inútil. Não existimos afinal senão pelo que
aparentamos? Há que ser a beleza da mercadoria? A mercadoria
perecível do ser. Com data e prazo de validade no rótulo. Como um
yogurte que azeda. Como a alma destrambelhada. E o destrambelho
cobre-se de muito verniz até um dia estalar. Sem nada mais do que aquilo que aparenta a
alma assusta-se ao ver que afinal a arte é isto. O verniz que estala. O
yogurte que azeda.O artificio que se desfaz. Frágil beleza que se
cultiva com o creme anti idade, com a dieta alimentar, com o yoga,
com a protecção masculina do pai e dos homens que vão passando na
vida dessas mulheres. Oxalá eles nunca vos falhem minhas pobres e
desgraçadas irmãs principalmente quando o espelho vos começar a
falhar...como agora, ontem,amanhã como esse trágico final: o reflexo desse negro espelho que troça de
todas as ilusões de beleza e revela uma patética máscara de ópera bufa. No meio destes pensamentos peço a conta
e saio do café. Já não aguento mais.Não sei se é náusea ou tristeza o que me anima os passos. Mas saio. Preciso de ar e de ver gente bonita de verdade. Gente boa.