quarta-feira, 4 de março de 2015

...mas de repente a morte colheu-o, inesperada, brutal...a morte que leva toda a gente sempre cedo demais, não importa a idade que se tenha, é sempre cedo demais.. a morte que evitamos a todo o custo mesmo quando viver custa tanto. a morte que dá-se a provar a toda a gente sem distinção e deixa um lugar vazio à mesa dentro do peito de quem ama.
 Com o passar do tempo os mortos vão-se acumulando e é ruidoso o seu silêncio porque nas nossas veias eles ainda correm e gritam tudo aquilo que ficou por dizer, por fazer. por isso importa cuidar de quem ainda respira,  tocar, deixar na pele a marca de um abraço, de um beijo. Porque nada dói mais do que o amor que não se fez em vida. por isso tira  máscara e respira...

(mas indiferente à comédia de enganos de que a vida humana é feita, a outra vida a biológica, a vegetal, base de toda a cadeia alimentar, essa vida alimenta-se da morte. a mãe terra sabe disso que o húmus alimento das plantas é feito de matéria orgânica decomposta, ou seja morta e por isso pronta a acolher nova vida. é preciso aceitar isso com naturalidade como quem aceita nascer e vem do nada e para o nada regressa. morrer para nascer, nascer para morrer, renascer uma e outra vez numa outra coisa qualquer, a vida sem a morte seria uma monstruosidade.)  

é por perdermos sorrisos e abraços ao longo da estrada, por sabermos que afinal  esta vida ridícula e pequenina é afinal tão valiosa, por sabermos que aquele rosto amado irá despedir-se de nós lá mais adiante, só por isso é que vale a pena esta vida que temos e só por isso é tão urgente vencer o medo, vencer a morte em vida e dizer-lhe de nós de peito aberto enquanto por cá andamos. porque o amor sem bravura, sem medo não é digno desse nome. porque cedo a noite chega e com ela o esquecimento de nós, dos outros, cedo iremos largar ancoras, largar as mãos, perder-nos-emos de vista. afinal a morte é somente não ser visto não é caro poeta? não seremos vistos nesta pele que nos acolhe por agora, provisoriamente, mas seremos noutro invólucro, noutra forma, noutro espaço-tempo qualquer reencontrar-nos-emos de preferência sem a consciência de ser que tanto dói. e se há alguma eternidade é nessa em que acredito. até lá, faz boa viagem meu amor. ill see you in another life when we're both cats...

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

há um grão de luz a dançar no poema, nesse movimento há um texto costurado junto ao silencio do corpo a querer dizer aquilo que há tanto tempo aguarda ser dito. um texto de verdade a entrar pelo sexo adentro, a sair pela pele a dizer vem e a oferecer-se inteiro a sorrir para ti. o texto poético busca a linguagem do corpo e ousa dar-lhe sentidos novos, ele acima de tudo não se quer portar bem. o texto deita a língua de fora aos senhores respeitáveis e puxa as saias às senhoras donas de casa com princípios (mas sem olhar a meios para alcançar os fins). porque o poema não é uma puta. ele não se vende, não se compra, ele oferece-se à sua total (in)compreensão. ele é em certos dias de perfeita transparência atmosférica o mar que nos chama nas copas das árvores quando a brisa corre nos ramos e rebenta nos nossos ouvidos. "só para ouvir passar o vento já valeu a pena ter nascido" diz o poeta. ele é natural. não usa maquilhagem. só uma ternura que dói. um contemplativo estado de urgência. texto a rodopiar pelo ar. poema enlouquecido.

o poema é um planeta onde se pode viver e respirar bem fundo


mas o meu texto é árido
fala de um silencio quotidiano
(quantos gritos e renuncias haverá dentro dele?)
sai um clarão de entendimento para a mesa do fundo se faz favor?
(ali onde se apascenta, entre o queque e a bica escaldada, o demónio dos dias que passam)
se houvesse um nome capaz de explicar esta ausência com que povoamos os dias...
conseguiria ele conter tudo o que nos falta e fere
ou deixaria ainda mais só e a arder a boca incauta que o pronunciasse?

saio para a rua. já é noite. agasalho-me
pressinto uma galáxia a nascer no canto mais sujo desta rua escura. mas fujo dela.
acobardo-me. não sou diferente de todos os outros

mas haverá ainda quem a veja, quem a (d)escreva?
desvio finalmente o olhar

estugo o passo
porque nós vamos morrer
e caminhamos apressados
sem reparar que vamos morrer
já ali ao virar da esquina
mas o poema sonhado percorre outro caminho por nós
vagarosamente
ele sente toda a estranha beleza da vida, que nasce e se extingue simultaneamente
e por isso mesmo sabe que todas as coisas
peixe, arvore, nuvem, homem, mar
são exatamente uma e a mesma coisa

o poema não exclui, não espolia, não agride
ele recolhe essa sensibilidade inteligente de todo o ser vivente ou existente
como uma iguaria que se metaboliza num corpo que se forma
já não no corpo do texto mas na própria natureza imanente de Deus
Deus é um cão, é uma pedra, és tu meu amor



onde estaríamos nós se procurássemos Deus não numa Igreja ou numa Mesquita ou no sacrossanto altar do Deus Dinheiro mas sim numa pedra ou num cão? provavelmente seríamos sem donos, sem ganancia, sem limites, nem crueldade. seríamos mais Humanos.